sábado, 28 de dezembro de 2013

Carta ao meu Papai Genoino (escrita ao som de “Madredeus”)

Meu querido “Nubins”,

         Já faz uma semana que terminei de ler o teu livro “Entre o sonho e o poder” e desde entao tenho tentando organizar todo o turbilhao de sentimentos e pensamentos que vieram à minha mente e ao meu coraçao depois desta leitura. A verdade é que também o fato de estar vivendo uma gestaçao faz com que minha percepçao de tudo seja outra, minha sensibilidade parece também que é outra e é claro que meus hormônios deixam tudo bastante confuso às vezes.
Demorei mas do que demoraria normalmente para ler um livro porque muitas vezes precisava parar, respirar, pensar em cada uma das palavras, no que significavam para mim, o que tinha sido tua vida, quais os caminhos que nos levam a tomar determinadas decisoes e a entender como você, meu Papis, pôde ser tao forte...
Sabe que nao sei se já te disse isso, mas a verdade é que durante toda minha vida convivi com este sentimento; o de saber que sou filha de pais coragem, que lutaram e nao tiveram medo de sofrer a até quase perecer em nome dos seus ideais... Pensava muitas vezes se eu seria assim tao forte, se eu também teria esta mesma garra, esta mesma vontade de lutar sofrendo todas as consequencias...
Na verdade esta resposta nao existe porque, bem ou mal, vivo em tempos diferentes, de outras lutas e outros sonhos, o que sim sei é que de certa forma eu e o Nanan crescemos influenciados por esta “herança” de toda a batalha que você e a Mamae viveram para sobreviver e lutar por um mundo melhor... e tudo o que vocês nos ensinaram durante este tempo, o que esperavam de nós, o que desejavam de nós, o que lutaram por nós, eu revivi e entendi por meio do teu livro... começando por entender tantas decisoes que vocês foram tomando ao longo do tempo, por entender minhs raízes, minha própria família.
Me marcou muito ver como você fala da tua família, dos meus avós.
Tenho uma relaçao distante com eles, sei pouco de como vivem e sei que eles têm uma vida muita distante da que tive. Lembro que quando fomos visitar meu avô naquela operaçao do coraçao, a filha do meu tio Ronaldo olhava pra mim e pro Nanan com uma mágoa, uma estranheza, um rancor, nao sei bem te dizer como senti e pude identificar isso, mas sei que ela olhava pra gente como que nao nos reconhecendo como sua família. Pra mim foi duro, mas entendo todas as escolhas que você fez e sei que se nao tivesse sido assim teria sido difícil manter uma clareza sobre tudo, o fato de você ter saído de lá e ter construído sua vida em outro lugar. De qualquer forma e por conta disso, fiquei feliz em saber e ler sobre meu avô, minha avó, a importância que ela teve na tua formaçao, a vontade que ela tinha de que o filho saísse do sertao e toda a luta que eles mesmos tiveram que travar para segurar a barra de ter visto um filho sair, sumir, morrer, renascer, sofrer, tantas coisas! Claro que como professora me marcou muito este papel da minha avó na sua alfabetizaçao... é bom saber que mesmo tendo crescido longe, tenho mais dela do que imaginava...
Sabe Papis, eu sempre quis saber muito sobre o que você e a mamae passaram na época da ditadura, sei que a Mariana e o Nanan se surpreenderam muito mais do que eu lendo o livro porque ficaram sabendo de uma série de coisas que eu sim já sabia... ou por intermédio das conversas que tivemos, ou por conversas com a Mamae ou, nao sei se sabe, pelas minhas “investigaçoes” particulares... Sim porque desde muito pequena, acho que com 9, 10 anos comecei a fazer isso, tudo se intensificou porque a Escola da Vila começou a estudar os anos 60 (eu estava na 3ª série); eu lembro que você me explicava muitas coisas, mas eu também “fucei” muito no seu escritório, lendo livros (li, por exemplo, com uns 14 anos, o Guerra de Guerrilhas...), entrevistas tuas, reportagens... A sua entrevista na Playboy, por exemplo, foi um marco para mim, porque lá fiquei sabendo de muitas coisas...
Nunca ficava triste pensando que vocês nao tinham me contado, porque imaginava como deveria ser duro ter que viver e reviver tudo aquilo e contar para mim. A depressao pós-parto da mamae, por exemplo, eu fiquei sabendo por esta entrevista. Nao guardo nenhuma mágoa por ela ou você nao terem me contado antes, porque sei que foi melhor assim, ir sabendo do que aconteceu aos poucos. Vejo que hoje tenho a maturidade necessária para entender a relaçao de vocês dois, a história que viveram e a uniao e força que surgiu e se renovou quando puderam superar este acontecimento. Agora que estou a ponto de me convertir em mae também, como já te contei, tenho medo de ter também uma crise de depressao, talvez porque a da mamae marcou minha vida e o que sou hoje, mas em realidade penso e confio que se acontecesse isso comigo, meu Miguel seria tao forte como você foi e nao deixaria que faltasse nada para minha filha, igual você fez comigo.
A verdade, meu Papai, é que nunca falamos muito abertamente sobre essa história mas eu queria de verdade soltar o que levo há anos, desde que li aquela entrevista feita pelo Bené, dentro de mim: muito obrigado. Muito obrigado meu Nubins, por nao ter tido medo de ficar comigo, por ter cuidado da mamae e de mim ao mesmo tempo, por ter trocado fraldas e feito tudo o que era preciso naquele momento, até mesmo por nao ter deixado a Batchan me levar de casa... se nao fosse por você acho que minha história – e a da mamae – seria outra e acho que esta afinidade que temos hoje vem dessa recordaçao eterna, da cumplicidade que tivemos que criar tao rápido quando eu era apenas um bebê.
Quando li o capítulo “Rioco, Miruna e Ronan” foi bastante difícil. Porque por mais que tenha conversado, nao sabia de alguns detalhes que você conta, como por exemplo que a mamae voltou a falar japonês. Também porque apesar de ter total segurança da relaçao que tenho com ela hoje, nao é fácil ler que de certa forma ela me rejeitava, nao me reconhecia como filha naquele momento. Fico pensando em como tinha que estar a cabeça dela para que isso tudo acontecesse, no quanto ela sofreu na ditadura e em como as marcas que algo assim deixam na vida de uma pessoa, passam a barreira do físico e das geraçoes.
É por tudo isso que digo que sim, a luta que você e a mamae travaram também marcou a história de vida que eu e o Nanan temos. Nós também temos heranças e recordaçoes de tudo isso, apesar de nao termos vivido naquela época... também tivemos nossos sofrimentos com todas as consequências da dureza destes anos tao difíceis... puxa, lembro tanto da “famosa” foto do Araguaia, quando foram lá em casa mostrar pra mim e o Nanan nao quis ver. Em como para mim parecia que existia uma fronteira tao esquisita entre o pai de hoje e aquela pessoa ali presa, que eu queria tanto salvar se pudesse!!!!
Sinto, Papis, que com teu livro eu pude fazer uma revisao de mim mesma, da relaçao com você e com a Mamae, da relaçao com o Nanan, da relaçao com a Mariana, das recordaçoes de nossa família... sabe, estar vivendo longe já me deu outro sentido para tudo isso porque sempre viverei com esta contradiçao: por um lado com a certeza e a alegria de ter encontrado um grande amor e por outro com uma pena e uma culpa por ter deixado vocês aí, tao longe... foi uma espécie de terapia ler a tua história que é também a história da mamae, e a minha, e a do Nanan, relembrar fatos, entender, refletir sobre eles, sobre o que ficou daquilo tudo e mais que nada, perceber que algumas unioes sao mais fortes que qualquer distância Espanha-Brasil.
Foi bom perceber por exemplo, por meio das conversas que tenho tido com a Mariana e a crise que ela viveu com a leitura do teu livro, que eu já te perdoei completamente, profundamente, por toda esta história. Percebi que sim, sofri muito e tive que reavaliar muito do que tinha idealizado de você como pai, mas que por ter vivido intensamente todo aquele processo e com a ajuda das pessoas queridas, superei totalmente esta crise de pai-filha que vivemos. Tenho tranquilidade ao ver que hoje nao guardo nenhum rancor, nenhuma mágoa de tudo aquilo e sao estes sentimentos de superaçao depois de algo tao difícil os que tenho tentado passar para a Mariana...
Também foi muito importante ler sobre tudo, tudinho que você fala da crise vivida ano passado... ainda terei que esperar alguns anos, alguns muito anos para poder eu mesma superar o que aconteceu, e acho que teu livro me ajudou a avançar um pouco neste sentido. Principalmente quando você fala do perdao e do sentimento que guarda dentro de si com tudo o que sofreu... eu sinto que esta é a melhor forma de seguir em frente porque se ficamos eternamente com raiva, rancor ou ódio estes sentimentos nos impedem de ir mais além e de sermos algo mais que estas pessoas que nos machucaram, mas ainda preciso aprender mais contigo a ser assim.
Eu sou esta mulher passional, que estava louca de raiva e de ódio e que só descansou um pouco depois que pôde dizer umas quantas verdade pros jornalistas da Folha e da Veja... ainda nao consegui superar a raiva que tenho do programa Pânico, por exemplo, daquelas pessoas que foram lá em casa apenas para aparecer na “telinha”, dos políticos pouco corajosos que nao souberam te apoiar, dos jornalistas pouco honestos que nao souberam escrever verdades e que convertiram boatos em manchetes, daquela mulher horrível que gritou com você no aeroporto justo antes do Miguel chegar, de tudo o que você teve que passar e que quase te derrubou por completo...
E aí me vejo lendo o seu livro e leio você falando do perdao, da volta por cima, do silêncio mudo, do seguir em frente, de que “Alimentar ódio, raiva, também faz mal. (...) O perdao nao é esquecimento, perdao nao é passar uma esponja, perdao é você ter consciência que a sua vida nao pode ser regida por aquela relaçao e dor e de ódio. Significa criar uma racionalidade capaz de sublimar aquela tragédia que é a bestialidade humana.” (p.52)  e meus olhos já se enchem de lágrima. Acho que de todas as sensaçoes do livro a mais forte de todas foi essa, a de aprender e entender que você só pôde seguir em frente e tornar-se melhor ser humano, melhor pessoa e nao se curvar perante a nada, porque é este homem maravilhoso, iluminado, que consegue verdadeiramente entender e aplicar este sentido tao humano e único do perdao. Ler este livro e em especial ler sobre todas as muitas vezes na tua trajetória em que teve que saber perdoar foi como compreender, nao totalmente, mas em grande parte, de onde vem minha grande admiraçao e a grande idealizaçao que sempre fiz de ti.
Eu também quero aprender a cultivar este novo significado para o perdao. Quero ser capaz de perdoar o que você sofreu, seja na tortura da ditadura, seja no massacre desta imprensa de hoje, quero ser capaz de olhar para estas pessoas, que nao preciso nomear mas que você sabe que me decepcionaram muito, e nao sentir nada, conseguir ser maior que isso tudo. Quero conseguir nao ter rancor dentro de mim... há umas semanas, depois de uma pequena crise totalmente relacionada com minha saudade do Brasil e meu “estado grávida” de ser de agora, decidi seguir uma filosofia zen... e dentro desta filosofia e também porque carrego minha Paula dentro de mim, nao quero andar nem conviver com rancores ou ódios, nao quero ter dentro de mim nada que nao sejam sentimentos bonitos e maiores que a vida mesma.
Como ainda nao sou forte o suficiente para esquecer, como ainda me dói muito relembrar o que você viveu, prefiro nao pensar nas pessoas que me suscitam este tipo de sentimento... prefiro nao pensar em determinados políticos, em determinadas revistas, em determinados jornais, em determinados personagens da tua história...
Ainda é difícil, mas para tentar alcançar isso tento direcionar meu pensamento para outra parte... no lugar de pensar em como foi duro ver você em casa todos os dias  - de pijama às vezes – triste e cabisbaixo, penso que nos meus últimos seis meses no Brasil pude conviver contigo mais do que convivi em muitas épocas de nossa vida de pai e filha. Tento nao pensar que chegava em casa e te encontrava triste, mas sim na alegria que vivi em ter você tao perto, em ter podido te contar detalhes do meu trabalho que antes o tempo nao alcançava para contar, nas vezes em que pedi tua ajuda e que pude contar com teu apoio, fosse para levar algo para a Vila que eu tinha esquecido em casa, fosse para ir na Embaixada espanhola... lembro dos tantos almoços juntos, das conversas, e da cumplicidade que nós 4 aprofundamos ainda mais durante este tempo...
Sao estes pequenos detalhes os que têm me permitido ver tudo o que sofremos de outra forma, de outra maneira. Claro que nao consigo ainda mudar e amadurecer tao por completo toda a dor vivida, mas de certa forma com teu livro foi como se começasse a trilhar este caminho em busca de uma paz interior com tudo o que injustamente você passou. Penso no meu texto “Suco de limao e queijadinha” que ganhou repercussoes jamais imaginadas, nos e-mails dos amigos e amigas dando todo seu apoio, das visitas solidárias de pessoas mais ou menos conhecidas, dos abraços amigos recebidos e da força que recebo de todos os lugares...
Por fim, é claro que estou bastante ansiosa com as eleiçoes deste ano... rezo todos os dias por você, pela tua campanha, para que você se reencontre com a tua militância, que se reencontre com o Genoino político que teve que abrir mao da personalidade genuína quando se tornou presidente do PT, clamo aos céus por boas energias utilizando as lembranças das tantas campanhas vividas anteriormente e sei que desta forma estou por perto, mesmo vivendo longe.
Sabe Papai, foi muito bonito, muito mesmo, ler quase ao final do teu livro sobre tua reflexao quando conheceu a família do Miguel. Esta tua vinda para a Espanha foi muito importante para mim e sei que tivemos alguns momentos tensos porque enquanto eu estava vivendo uma alegria intensa, muitas vezes te via muito quieto e cabisbaixo, mas hoje, depois de quase 6 meses, entendo que nao era por outro motivo além daquele que você mesmo conta: foi depois daqui que você retomou seu caminho e tomou sua decisao.
Peço desculpas por ter ficado meio “brava” contigo aquele dia lá em Madrid, por ter te dado uma “bronca” por te ver tao quieto... sei que você me deu uma grande prova de amor vindo para cá, entrando comigo naquela igreja de San Lorenzo, estando comigo durante todos os rituais matrimoniais que você e a mamae sempre repudiaram tanto mas que, assim como outros tantos rituais, comigo tiveram que aprender a ver de outra forma. Jamais esquecerei este gesto teu...
É meu querido Nubins, Papis, Pakpai, Papai querido e amado, seu livro mexeu muito, muito mesmo comigo... e sei que continuará deixando suas raízes agora que iniciarei a traduçao ao espanhol para que teu genro possa ler sobre a tua, a nossa história... sei que foi um processo muito rico e muito profundo ter vivido a produçao deste livro junto à Denise e depois de terminar a leitura fico pensando em como foi bom que “Entre o sonho e o poder” tenha te encontrado quando, creio eu, você mais necessitava.
Tentei aqui de certa forma responder à pergunta, aparentemente simples, que você me fez outro dia: “E aí filha, o que você achou do livro?”... como vê, nao poderia responder tao superficialmente depois de uma leitura tao marcante como esta... todas as lágrimas que soltei durante este processo, seja lendo seu livro, seja esrevendo esta carta, foram lágrimas libertadoras, lágrimas de superaçao, lágrimas de admiraçao, e mais que nada, lágrimas de amor.
Este meu amor, tao grande, tao único, o amor de filha que sinto por você, meu papai querido.

Muitos beijos...


Mimi 

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