domingo, 23 de fevereiro de 2014

A dona da mochila ilustrada

O sinal indicando que o telefone estava chamando tocou uma, duas, três vezes. No quarto toque, a voz dela: 

- Alô?
- Mamãe, é a Mimi, o que aconteceu com o papai?
- Calma Mimi, está tudo bem. Fique aí, fique tranquila, ele passou mal, mas está sendo cuidado. Ele está bem.

Ele não estava bem. Mas ela não sabia. Ele, é claro, meu pai, ela, essa mulher indescritível, Rioco Kayano, minha mãe. Foi ela que ficou ao lado do meu pai durante as 15 horas que separaram a primeira dor da dissecção da aorta, da entrada para o centro cirúrgico. Foi ela que sentou como pôde do lado dele na ambulância, na cadeira lateral onde seus pés encaixavam como dava, aguentando firmemente com a força de seu olhar, todo o trajeto de subida da serra de Taubaté, rumo a São Paulo. Foi ela que, quando soube que era grave, muito grave o que meu pai tinha, conseguiu tirar forças de não sei onde para me dizer: "Mimi, acredite no seu pai, ele vai aguentar. Se você aguentar, ele vai aguentar".

Ele aguentou.

Era uma mochila toda ilustrada com mapas. Nem pequena, nem grande, mas leve, fácil de carregar. Estava assim de ladinho no ombro dela, encostando na camisa polo laranja. A mão que segurava a mochila, era pequena, mas forte, e firme. Veio descendo, descendo, encontrou a grade e disse: "Eu me despedi do papai, ele está forte, chegou a hora, a gente se preparou para vencer essa, a gente vai vencer". Minha mãe. De novo. Na porta da polícia federal em São Paulo, quando meu pai foi preso.

Daquele dia em diante a mochila ilustrada junto com a sua dona nunca mais voltou para morar em São Paulo. Porque desde que meu Genoino pai foi preso minha Rioco mãe está guerreira, colossal, do lado dele, segurando todas as cordas que vão arrebentando, e costurando com sua paciência e tenacidade nipo-brasileira, cada fiozinho que parece que vai se soltar. É muito, muito difícil vê-la longe daqui, de alguma forma cumprindo prisão domiciliar junto com meu pai. É triste olhar para sua casa que agora eu habito, e ver suas linhas e panos solitários, sem a mão bordadeira para transformar... é desgarrador ver suas pinturas colocadas em tantas paredes da casa, sabendo que as mãos firmes da nossa baixinha não puderam nunca mais voltar ao ateliê onde ela se realizava entre telas, pincéis e cores, tantas cores.

A minha mãe é uma mulher feita de muitas cores, tantas cores que seria impossível descrever qual delas atrai mais as pessoas, as amigas, os colegas, as parceiras de bordado, as irmãs... seus filhos e netos. E seu marido, claro. Eu sinto muita, muita falta da minha mãe aqui do meu lado colocando a cor que eu tanto preciso para seguir em frente com os desafios da vida... mas aguento esse buraco como dá, porque sei que ela é a única pessoa nesse mundo capaz de garantir a saúde de meu pai, e é por isso ela não pode desgrudar dele de jeito nenhum.

Minha mãe e meu pai têm uma história que não é apenas de amor, amor intenso e verdadeiro, daquele que aguenta anos de prisão e separação, mas é também uma história de entrega total e absoluta ao outro, custe o que custar. Na história deles não existe o "talvez", o "será", o "quem sabe". Existe o "vamos". Porque eles sempre olham para a frente, sempre.

É por isso que mesmo sendo tão difícil a situação que vivemos, meu pai consegue de alguma forma se estabilizar com a presença de sua baixinha do lado. É ela que cuida de cada uma de suas refeições, não deixando ele escapar nem por um milímetro dos cuidados que ela elaborou. É ela que organiza como pode a ginástica diária que movimenta de alguma forma o corpo cansado de meu pai. É ela que consegue perceber quando alguns sinais indicam que as coisas estão mais difíceis e é preciso uma ajuda profissional. É a minha mãe que está lá, incondicionalmente, ao lado do meu pai, para que nunca mais ela tenha que ter medo de se realmente pode dizer aos filhos que ele vai aguentar.

Durante estes mais de 90 dias de calvário, a única vez em que fiquei com medo da reação da minha mãe, e que achei que ela não ia aguentar, foi quando soubemos, nos primeiros dias da prisão do meu pai, que ele estava passando mal, com a pressão desregulada, e não existia um tratamento adequado dentro do presídio. Naquele dia ela gritou com lágrimas nos olhos: "Estão querendo matar o Genoino?". Foi de uma dor profunda, profunda...

Eu nunca vou esquecer daqueles olhos. Olhos de amor, de desespero, de angústia. Olhos de alguém que já aguentou de tudo, olhos de uma mulher que é capaz de escalar o mundo para cuidar e ser a companheira incansável do meu guerreiro pai.

Minha mãe está longe, longe... não posso mais almoçar com ela, pedir que ela faça um udon e levar as calças do Luis para costurar (no joelho, sempre no joelho). Ela está longe e não pode ir comigo encontrar a paz de nosso grupo de bordado. Ela está longe e não podemos ser eu e ela, mãe e filha, plenamente. Sofro, sofro demais, mas sei que ela está longe porque está perto, pertinho, grudada, no "Gê" dela, pronta para segurar todas as angústias, firme para dar todos os suportes, forte para ser o ponto de apoio de um homem que se certamente não sucumbiu até agora é também porque sabe que tem o apoio de uma mulher única, especial para além dos limites do possível, que estará do lado dele sempre. E que sempre acredita que ele vai aguentar.

Mamãe, eu te amo muito. Mesmo.


domingo, 16 de fevereiro de 2014

A quem você confiaria a vida de quem você ama?


 Hoje meu filho Luis estava jogando futebol com o tio e de repente, tentando defender o gol, bateu as costas na parede e caiu no chão não só chorando, mas sim urrando de dor. Fui correndo ao seu encontro e o segurei no meu colo durante 5 longos minutos, quando o choro doído dizia de toda sua dor e sua angústia. Naquele momento, pensei, "E se for algo grave, a quem posso confiar essa vida que é mais preciosa que a minha?". Felizmente meu filho se curou após uma boa dose de abraço e pediu como remédio desenhar seus dinossauros com o tio querido. Mas infelizmente nem sempre quem amamos se cura de uma forma tão fácil de resolver.

Na minha mente lembro bem de momentos de preocupação com pessoas amadas... um corte do meu irmão que precisou de sutura, a queimadura de minha mãe, e depois do meu marido, que necessitaram curativos cuidadosos, e mesmo torções dos meus filhos que demandaram uma corrida rápida ao hospital. Mas não lembro de grandes preocupações com a saúde de meu pai. Lembro de quando em 1992 ele descobriu  a pressão alta e de um acidente de carro envolvendo uma vaca na pista que apesar de manchá-lo inteiro de sangue, não causou nem mesmo um arranhão.

Parece que de alguma forma a vida estava deixando que ele guardasse todas as energias e forças possíveis para o que iria enfrentar em julho de 2013, quando sua aorta começou a rasgar e durante 15 horas aguentou o que pôde até que mãos hábeis pudessem reparar o problema que quase lhe rouba a vida. Já falei de muitas formas sobre a dor que vivi quando a vida de meu pai esteve por um fio, e também sei e já escutei muita gente compartilhando comigo sobre o desespero e a angústia que é ter algum familiar entre a vida e a morte, ainda que, acredito eu, poucas destas pessoas depois tenham tido que conviver com a desconfiança alimentada publicamente, sobre a veracidade à respeito daquilo que quase tirou a sua alma. Talvez essas pessoas entendam a minha dor, a dor de minha família... porque nesses momentos onde um familiar está entre a vida e a morte não sabemos o que pensar, como esperar, para quem rezar, e por isso do jeito que dá, pedimos, clamamos, oramos, damos tudo o que temos dentro para tentar de alguma maneira superar aquele momento.

O que mais me dói é que meu pai superou uma situação médica dramática mas isso não foi suficiente para termos tranquilidade. Seu corpo foi guerreiro, foi vencedor e superou as estatísticas, os 10% de chances que o ligavam à vida, o micro-avc, a necessidade de vencer a internação hospitalar, mas ele nunca poderá respirar como antes daquele 24 de julho. Porque para sempre terá que estar atento à sua condição de hipertenso, de apresentar um alto risco cardiovascular, com a necessidade constante de controle que impeça de todas as formas que a diseccção volte a acontecer. Porque ela pode voltar a acontecer. E nosso coração sofre porque sabemos que ele pode não ter a mesma sorte, força, socorro de antes, e não vencer essa situação.

Diante do cenário, em quem confiar? Confio em minha mãe, sempre tão atenta aos cuidados alimentares de meu pai. Confio nos médicos que o acompanham, que pedem os exames necessários, decidem a medicação e nos indicam o caminho a seguir quando algo não acontece como o planejado. E confio na vida, que já mostrou por várias vezes que apesar do caminho tortuoso, de alguma forma quer que meu pai esteja por aqui por um bom tempo.

Mas, o que fazer, ou sentir, quando a vida de quem você ama, no caso, a vida de meu pai, pode ser colocada em risco a depender de uma decisão judicial? Simplesmente pedir. Pedir que para além de resultados de julgamentos, disputas políticas, acordos, trâmites e execuções, lembrem-se de que há uma vida. Uma vida que não representa apenas o político José Genoino, com seus apoiadores e detratores, como todo político, mas uma vida da qual dependem muitas outras. Nas mãos de uma decisão judicial está a vida do ex-deputado e ex-presidente do PT, mas está também a vida de um marido, um pai, um avô, um amigo, um tio, um filho, um homem, que tem sua saúde colocada em risco toda vez em que deixa-se de lado o humano e se coloca em discussão apenas o jurídico e o político.

No dia 19 de fevereiro de 2014 terminam os 90 dias concedidos a meu pai para que ele cumpra sua pena em prisão domiciliar. Eu aqui, de peito aberto, peço que o futuro da vida de José Genoino seja decidido com a razão, e não com a desconfiança. Com a verdade e não com a manipulação. Com a lógica e não com o risco. Com a verdade que todos sabem que existe: ele é uma pessoa que precisa de cuidados que nenhum presídio pode oferecer, e nas linhas de uma decisão judicial estão em jogo não apenas questões jurídicas, mas principalmente o respeito e o cuidado com com os altos riscos envolvidos na vida do homem José Genoino.

Vida essa que, espero eu, seja zelada como merece.

Miruna Genoino - 16 de fevereiro de 2014


sábado, 15 de fevereiro de 2014

Meu blog, minha voz...

Quando comecei com este blog tinha a intenção de escrever periodicamente... fui engolida pela vida e acabei impedida de seguir em frente, mas agora vou retomar, juro que vou, porque a escrita me liberta e me ajuda a organizar esse mundo de coisas que sinto dentro de mim.

Vou conseguir.