Meu querido “Nubins”,
Já faz
uma semana que terminei de ler o teu livro “Entre o sonho e o poder” e desde
entao tenho tentando organizar todo o turbilhao de sentimentos e pensamentos
que vieram à minha mente e ao meu coraçao depois desta leitura. A verdade é que
também o fato de estar vivendo uma gestaçao faz com que minha percepçao de tudo
seja outra, minha sensibilidade parece também que é outra e é claro que meus
hormônios deixam tudo bastante confuso às vezes.
Demorei mas do que demoraria normalmente para ler um
livro porque muitas vezes precisava parar, respirar, pensar em cada uma das
palavras, no que significavam para mim, o que tinha sido tua vida, quais os
caminhos que nos levam a tomar determinadas decisoes e a entender como você,
meu Papis, pôde ser tao forte...
Sabe que nao sei se já te disse isso, mas a verdade é
que durante toda minha vida convivi com este sentimento; o de saber que sou
filha de pais coragem, que lutaram e nao tiveram medo de sofrer a até quase
perecer em nome dos seus ideais... Pensava muitas vezes se eu seria assim tao
forte, se eu também teria esta mesma garra, esta mesma vontade de lutar
sofrendo todas as consequencias...
Na verdade esta resposta nao existe porque, bem ou
mal, vivo em tempos diferentes, de outras lutas e outros sonhos, o que sim sei é
que de certa forma eu e o Nanan crescemos influenciados por esta “herança” de
toda a batalha que você e a Mamae viveram para sobreviver e lutar por um mundo
melhor... e tudo o que vocês nos ensinaram durante este tempo, o que esperavam
de nós, o que desejavam de nós, o que lutaram por nós, eu revivi e entendi por
meio do teu livro... começando por entender tantas decisoes que vocês foram
tomando ao longo do tempo, por entender minhs raízes, minha própria família.
Me marcou muito ver como você fala da tua família, dos
meus avós.
Tenho uma relaçao distante com eles, sei pouco de como
vivem e sei que eles têm uma vida muita distante da que tive. Lembro que quando
fomos visitar meu avô naquela operaçao do coraçao, a filha do meu tio Ronaldo
olhava pra mim e pro Nanan com uma mágoa, uma estranheza, um rancor, nao sei
bem te dizer como senti e pude identificar isso, mas sei que ela olhava pra
gente como que nao nos reconhecendo como sua família. Pra mim foi duro, mas
entendo todas as escolhas que você fez e sei que se nao tivesse sido assim
teria sido difícil manter uma clareza sobre tudo, o fato de você ter saído de
lá e ter construído sua vida em outro lugar. De qualquer forma e por conta
disso, fiquei feliz em saber e ler sobre meu avô, minha avó, a importância que
ela teve na tua formaçao, a vontade que ela tinha de que o filho saísse do
sertao e toda a luta que eles mesmos tiveram que travar para segurar a barra de
ter visto um filho sair, sumir, morrer, renascer, sofrer, tantas coisas! Claro
que como professora me marcou muito este papel da minha avó na sua
alfabetizaçao... é bom saber que mesmo tendo crescido longe, tenho mais dela do
que imaginava...
Sabe Papis, eu sempre quis saber muito sobre o que
você e a mamae passaram na época da ditadura, sei que a Mariana e o Nanan se
surpreenderam muito mais do que eu lendo o livro porque ficaram sabendo de uma
série de coisas que eu sim já sabia... ou por intermédio das conversas que
tivemos, ou por conversas com a Mamae ou, nao sei se sabe, pelas minhas
“investigaçoes” particulares... Sim porque desde muito pequena, acho que com 9,
10 anos comecei a fazer isso, tudo se intensificou porque a Escola da Vila
começou a estudar os anos 60 (eu estava na 3ª série); eu lembro que você me
explicava muitas coisas, mas eu também “fucei” muito no seu escritório, lendo
livros (li, por exemplo, com uns 14 anos, o Guerra de Guerrilhas...),
entrevistas tuas, reportagens... A sua entrevista na Playboy, por exemplo, foi
um marco para mim, porque lá fiquei sabendo de muitas coisas...
Nunca ficava triste pensando que vocês nao tinham me
contado, porque imaginava como deveria ser duro ter que viver e reviver tudo
aquilo e contar para mim. A depressao pós-parto da mamae, por exemplo, eu
fiquei sabendo por esta entrevista. Nao guardo nenhuma mágoa por ela ou você
nao terem me contado antes, porque sei que foi melhor assim, ir sabendo do que
aconteceu aos poucos. Vejo que hoje tenho a maturidade necessária para entender
a relaçao de vocês dois, a história que viveram e a uniao e força que surgiu e
se renovou quando puderam superar este acontecimento. Agora que estou a ponto
de me convertir em mae também, como já te contei, tenho medo de ter também uma
crise de depressao, talvez porque a da mamae marcou minha vida e o que sou
hoje, mas em realidade penso e confio que se acontecesse isso comigo, meu
Miguel seria tao forte como você foi e nao deixaria que faltasse nada para
minha filha, igual você fez comigo.
A verdade, meu Papai, é que nunca falamos muito
abertamente sobre essa história mas eu queria de verdade soltar o que levo há
anos, desde que li aquela entrevista feita pelo Bené, dentro de mim: muito
obrigado. Muito obrigado meu Nubins, por nao ter tido medo de ficar comigo, por
ter cuidado da mamae e de mim ao mesmo tempo, por ter trocado fraldas e feito
tudo o que era preciso naquele momento, até mesmo por nao ter deixado a Batchan
me levar de casa... se nao fosse por você acho que minha história – e a da
mamae – seria outra e acho que esta afinidade que temos hoje vem dessa
recordaçao eterna, da cumplicidade que tivemos que criar tao rápido quando eu
era apenas um bebê.
Quando li o capítulo “Rioco, Miruna e Ronan” foi
bastante difícil. Porque por mais que tenha conversado, nao sabia de alguns
detalhes que você conta, como por exemplo que a mamae voltou a falar japonês.
Também porque apesar de ter total segurança da relaçao que tenho com ela hoje,
nao é fácil ler que de certa forma ela me rejeitava, nao me reconhecia como
filha naquele momento. Fico pensando em como tinha que estar a cabeça dela para
que isso tudo acontecesse, no quanto ela sofreu na ditadura e em como as marcas
que algo assim deixam na vida de uma pessoa, passam a barreira do físico e das geraçoes.
É por tudo isso que digo que sim, a luta que você e a
mamae travaram também marcou a história de vida que eu e o Nanan temos. Nós
também temos heranças e recordaçoes de tudo isso, apesar de nao termos vivido
naquela época... também tivemos nossos sofrimentos com todas as consequências
da dureza destes anos tao difíceis... puxa, lembro tanto da “famosa” foto do
Araguaia, quando foram lá em casa mostrar pra mim e o Nanan nao quis ver. Em
como para mim parecia que existia uma fronteira tao esquisita entre o pai de
hoje e aquela pessoa ali presa, que eu queria tanto salvar se pudesse!!!!
Sinto, Papis, que com teu livro eu pude fazer uma
revisao de mim mesma, da relaçao com você e com a Mamae, da relaçao com o
Nanan, da relaçao com a Mariana, das recordaçoes de nossa família... sabe,
estar vivendo longe já me deu outro sentido para tudo isso porque sempre
viverei com esta contradiçao: por um lado com a certeza e a alegria de ter
encontrado um grande amor e por outro com uma pena e uma culpa por ter deixado
vocês aí, tao longe... foi uma espécie de terapia ler a tua história que é
também a história da mamae, e a minha, e a do Nanan, relembrar fatos, entender,
refletir sobre eles, sobre o que ficou daquilo tudo e mais que nada, perceber
que algumas unioes sao mais fortes que qualquer distância Espanha-Brasil.
Foi bom perceber por exemplo, por meio das conversas
que tenho tido com a Mariana e a crise que ela viveu com a leitura do teu
livro, que eu já te perdoei completamente, profundamente, por toda esta história.
Percebi que sim, sofri muito e tive que reavaliar muito do que tinha idealizado
de você como pai, mas que por ter vivido intensamente todo aquele processo e
com a ajuda das pessoas queridas, superei totalmente esta crise de pai-filha
que vivemos. Tenho tranquilidade ao ver que hoje nao guardo nenhum rancor,
nenhuma mágoa de tudo aquilo e sao estes sentimentos de superaçao depois de
algo tao difícil os que tenho tentado passar para a Mariana...
Também foi muito importante ler sobre tudo, tudinho
que você fala da crise vivida ano passado... ainda terei que esperar alguns
anos, alguns muito anos para poder eu mesma superar o que aconteceu, e acho que
teu livro me ajudou a avançar um pouco neste sentido. Principalmente quando
você fala do perdao e do sentimento que guarda dentro de si com tudo o que
sofreu... eu sinto que esta é a melhor forma de seguir em frente porque se
ficamos eternamente com raiva, rancor ou ódio estes sentimentos nos impedem de
ir mais além e de sermos algo mais que estas pessoas que nos machucaram, mas
ainda preciso aprender mais contigo a ser assim.
Eu sou esta mulher passional, que estava louca de
raiva e de ódio e que só descansou um pouco depois que pôde dizer umas quantas
verdade pros jornalistas da Folha e da Veja... ainda nao consegui superar a
raiva que tenho do programa Pânico, por exemplo, daquelas pessoas que foram lá
em casa apenas para aparecer na “telinha”, dos políticos pouco corajosos que
nao souberam te apoiar, dos jornalistas pouco honestos que nao souberam escrever
verdades e que convertiram boatos em manchetes, daquela mulher horrível que
gritou com você no aeroporto justo antes do Miguel chegar, de tudo o que você
teve que passar e que quase te derrubou por completo...
E aí me vejo lendo o seu livro e leio você falando do
perdao, da volta por cima, do silêncio mudo, do seguir em frente, de que “Alimentar ódio, raiva, também faz mal.
(...) O perdao nao é esquecimento, perdao nao é passar uma esponja, perdao é
você ter consciência que a sua vida nao pode ser regida por aquela relaçao e
dor e de ódio. Significa criar uma racionalidade capaz de sublimar aquela
tragédia que é a bestialidade humana.” (p.52) e meus olhos já se enchem de lágrima. Acho
que de todas as sensaçoes do livro a mais forte de todas foi essa, a de aprender
e entender que você só pôde seguir em frente e tornar-se melhor ser humano,
melhor pessoa e nao se curvar perante a nada, porque é este homem maravilhoso,
iluminado, que consegue verdadeiramente entender e aplicar este sentido tao
humano e único do perdao. Ler este livro e em especial ler sobre todas as
muitas vezes na tua trajetória em que teve que saber perdoar foi como
compreender, nao totalmente, mas em grande parte, de onde vem minha grande
admiraçao e a grande idealizaçao que sempre fiz de ti.
Eu também quero aprender a cultivar este novo
significado para o perdao. Quero ser capaz de perdoar o que você sofreu, seja
na tortura da ditadura, seja no massacre desta imprensa de hoje, quero ser
capaz de olhar para estas pessoas, que nao preciso nomear mas que você sabe que
me decepcionaram muito, e nao sentir nada, conseguir ser maior que isso tudo.
Quero conseguir nao ter rancor dentro de mim... há umas semanas, depois de uma
pequena crise totalmente relacionada com minha saudade do Brasil e meu “estado
grávida” de ser de agora, decidi seguir uma filosofia zen... e dentro desta
filosofia e também porque carrego minha Paula dentro de mim, nao quero andar
nem conviver com rancores ou ódios, nao quero ter dentro de mim nada que nao
sejam sentimentos bonitos e maiores que a vida mesma.
Como ainda nao sou forte o suficiente para esquecer,
como ainda me dói muito relembrar o que você viveu, prefiro nao pensar nas
pessoas que me suscitam este tipo de sentimento... prefiro nao pensar em
determinados políticos, em determinadas revistas, em determinados jornais, em
determinados personagens da tua história...
Ainda é difícil, mas para tentar alcançar isso tento
direcionar meu pensamento para outra parte... no lugar de pensar em como foi
duro ver você em casa todos os dias - de
pijama às vezes – triste e cabisbaixo, penso que nos meus últimos seis meses no
Brasil pude conviver contigo mais do que convivi em muitas épocas de nossa vida
de pai e filha. Tento nao pensar que chegava em casa e te encontrava triste, mas
sim na alegria que vivi em ter você tao perto, em ter podido te contar detalhes
do meu trabalho que antes o tempo nao alcançava para contar, nas vezes em que
pedi tua ajuda e que pude contar com teu apoio, fosse para levar algo para a
Vila que eu tinha esquecido em casa, fosse para ir na Embaixada espanhola...
lembro dos tantos almoços juntos, das conversas, e da cumplicidade que nós 4
aprofundamos ainda mais durante este tempo...
Sao estes pequenos detalhes os que têm me permitido
ver tudo o que sofremos de outra forma, de outra maneira. Claro que nao consigo
ainda mudar e amadurecer tao por completo toda a dor vivida, mas de certa forma
com teu livro foi como se começasse a trilhar este caminho em busca de uma paz
interior com tudo o que injustamente você passou. Penso no meu texto “Suco de
limao e queijadinha” que ganhou repercussoes jamais imaginadas, nos e-mails dos
amigos e amigas dando todo seu apoio, das visitas solidárias de pessoas mais ou
menos conhecidas, dos abraços amigos recebidos e da força que recebo de todos
os lugares...
Por fim, é claro que estou bastante ansiosa com as
eleiçoes deste ano... rezo todos os dias por você, pela tua campanha, para que
você se reencontre com a tua militância, que se reencontre com o Genoino
político que teve que abrir mao da personalidade genuína quando se tornou
presidente do PT, clamo aos céus por boas energias utilizando as lembranças das
tantas campanhas vividas anteriormente e sei que desta forma estou por perto,
mesmo vivendo longe.
Sabe Papai, foi muito bonito, muito mesmo, ler quase
ao final do teu livro sobre tua reflexao quando conheceu a família do Miguel.
Esta tua vinda para a Espanha foi muito importante para mim e sei que tivemos
alguns momentos tensos porque enquanto eu estava vivendo uma alegria intensa,
muitas vezes te via muito quieto e cabisbaixo, mas hoje, depois de quase 6
meses, entendo que nao era por outro motivo além daquele que você mesmo conta:
foi depois daqui que você retomou seu caminho e tomou sua decisao.
Peço desculpas por ter ficado meio “brava” contigo
aquele dia lá em Madrid, por ter te dado uma “bronca” por te ver tao quieto...
sei que você me deu uma grande prova de amor vindo para cá, entrando comigo
naquela igreja de San Lorenzo, estando comigo durante todos os rituais matrimoniais
que você e a mamae sempre repudiaram tanto mas que, assim como outros tantos
rituais, comigo tiveram que aprender a ver de outra forma. Jamais esquecerei
este gesto teu...
É meu querido Nubins, Papis, Pakpai, Papai querido e
amado, seu livro mexeu muito, muito mesmo comigo... e sei que continuará
deixando suas raízes agora que iniciarei a traduçao ao espanhol para que teu
genro possa ler sobre a tua, a nossa história... sei que foi um processo muito
rico e muito profundo ter vivido a produçao deste livro junto à Denise e depois
de terminar a leitura fico pensando em como foi bom que “Entre o sonho e o
poder” tenha te encontrado quando, creio eu, você mais necessitava.
Tentei aqui de certa forma responder à pergunta,
aparentemente simples, que você me fez outro dia: “E aí filha, o que você achou do livro?”... como vê, nao poderia
responder tao superficialmente depois de uma leitura tao marcante como esta...
todas as lágrimas que soltei durante este processo, seja lendo seu livro, seja
esrevendo esta carta, foram lágrimas libertadoras, lágrimas de superaçao,
lágrimas de admiraçao, e mais que nada, lágrimas de amor.
Este meu amor, tao grande, tao único, o amor de filha
que sinto por você, meu papai querido.
Muitos beijos...
Mimi
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